D1835 Ser ou não ser
Você se sente livre para fazer as escolhas que tem vontade? Liberdade de escolhas, foi um assunto que tocamos ontem. Acredito que liberdade englobe diversos assuntos polêmicos. De fatos passados históricos e ao presente… Do “Meu corpo, minhas regras” até a baleia presa no Sea World para a satisfação de alguém… Sempre será um assunto polêmico.
E já que estamos aqui para falar além da leucemia, por que não sobre a sensação de ser livre, sobre o que eu escolho para mim?
Vida de biólogo nunca foi fácil, trabalhei alguns anos com consultoria ambiental. Antes de descobrir a leucemia eu trabalhava embarcado. Era uma escala pesada, passávamos 35 dias a bordo e 35 dias em terra. Por sorte tinha uma tripulação maravilhosa onde éramos quase uma família.
O que eu fazia a bordo? Era técnico ambiental com algumas funções acumuladas, como todo trabalhador brasileiro e ficava responsável pelos programas ambientais a bordo. Junto comigo eu tinha 2 irmãos, a Lu e o Leo (também biólogos). A Lu fazia o papel de irmã mais velha cuidando dos irmãos mais novos. Tinha o Eng. Batista também, eu sempre deixava a ronda da casa de máquinas para a noite que era a hora do turno dele e conversávamos por horas.
Um belo dia chegou um cara bem grande, com aquela voz meio Ed Mota com Tim Maia, nosso rádio operador junto com o Milton que faziam nossos dias no passadiço sempre mais leves com boas doses de café e jogos de xadrez. E para finalizar essa embarcação premiada tinha o Patrick que era uma “doidera”, até hoje quando falo “doidera” e lembro dele.
Você pode até estar se perguntando o que essa tripulação louca tem a ver com escolhas e liberdade.
Eu estava nas minhas 28 primaveras e sempre fui um bom vivant. Até duro e liso sem dinheiro eu sabia aproveitar, como todo carioca da gema. A praia estava ali a 15 minutos de bike da minha casa e era de graça, colocava 1.5L de água para congelar no dia anterior e lá estava eu.
Infelizmente o embarque talvez seja aonde o biólogo seja menos desvalorizado financeiramente então optei por embarcar. Sabia que não seria fácil, teria que esperar mais de um mês para sextar, para ver meus amigos, família. Talvez perdesse até o Natal, o Ano Novo, o Carnaval… mas foi a vida que eu escolhi.
Por sorte tive essa tripulação maravilhosa que deixava o dia bem mais leves. E como toda a faca de 2 gumes eu tinha a escolha de lamentar ou de admirar cada pôr do sol único a 300km de qualquer pedaço de terra.
Até que me adaptei rápido com essa rotina de trabalhar mês sim, mês não. Realmente era o que eu queria, não me importava em renunciar datas festivas ou ocasiões especiais. Nosso Natal a bordo teve o Ricardo de papai Noel, com direito a ceia que tinha até vinho (sem álcool). Agora me expliquem, vinho sem álcool não é o popular suco de uva? Nossos fogos de Ano Novo foram graças ao imediato que pegou um sinalizador e atirou. Era uma vida ingrata que eu escolhi e mesmo assim estava mais feliz com os bônus do que com os ônus.
E aí veio o câncer, a leucemia aguda é um pouco diferente de outros cânceres por ser muito rápida. Já tinha os sintomas cheguei a embarcar de novo e embarquei sem saber, foi após o embarque que descobri. Desci do navio mal das pernas, sempre fui um gordinho atleta e já não conseguia mais correr. Minha mãe pensou ser de dengue a depressão. As praias que eu ia todo dia da minha folga já não ia mais…
Pouca gente entende porque tenho Leo e Lu como irmãos. Quando saíamos ou voltávamos para o navio eles passavam uns dias lá em casa porque não eram do Rio. Nos dávamos tão bem que 24 horas x 35 dias juntos era pouco, era mais intenso que BBB. No último desembarque estava muito mal e no último médico que fui fiz um hemograma. Enviamos para o pai da Lu que era médico, eu tinha certeza que estava muito zoado. Fomos dormir, eu cedia o quarto para eles e dormia com meus pais. Então Lu acordou meus pais e deu a notícia. O pai da Lu conversou com meus pais. Lu, Leo e meus pais sabiam que eu estava com leucemia e eu não. Então fomos para o hospital e lá recebi o diagnóstico.
De lá para cá vocês já conhecem um pouco da história. E agora com a mielodisplasia vivo uma rotina de embarcado. Numa escala de 10 dias em SP e 20 no Rio. Continuo perdendo datas comemorativas e importantes, só que dessa vez embarquei meus pais nessa rotina comigo. Hoje dia 5, é aniversário do meu irmão. Talvez nunca tenha dado valor para datas festivas por ser uma escolha, ser desapegado era mais fácil. Só que agora deixou de ser.
Durante esses anos as prioridades foram mudando, conviver com a doença não significa uma sentença de morte. Só que nos coloca de frente com uma realidade diferente. A realidade de que a vida é finita. A bordo eu sabia que o próximo Ano Novo estaria em terra, agora com os pés fincados no chão não sei se estarei na Terra.
Não olhe por um ponto triste, pois não estou triste. A vida é finita e moro no Rio, aqui temos água da CEDAE, bala perdida, arrastão… no sentido de morrer, mielodisplasia é minha última preocupação… Pode parecer triste, mas é a realidade e me sinto muito mais feliz sendo realista do que talvez consiga transmitir. Porque hoje sei o valor de estar vivo por mais um dia, por mais 1835 dias…
Diferente do embarque, não tenho o poder de escolha de estar lá para cantar um parabéns. Não vim para lamentar, mas talvez não te mostrar o quanto vale ter o poder de escolha possa fazer você tomar a decisão correta. Valorize seu poder de escolha sempre. Ser privado de escolhas, de sua liberdade não é fácil de se conviver. “Não existe aquário maior que o mar”, “continue a nadar”…
Parabéns mi! Ano que vem estaremos ai junto e ainda teremos Victória
#tbt na foto e na música
Todas as vibrações positivas pra vc! 💕
obrigado!!!! para nós