D quarentena 1857

D quarentena 1857

28 de março de 2020 2 Por Daniel Campbell

Quarentena? Talvez você já esteja cansado dela, assim como praticamente todos. Como paciente oncológico o termo isolamento não é tão novidade quanto para o resto da humanidade. A sociedade parece estar meio louca com o confinamento e digo isso porque tenho o instagram e só observo. Receitas de bolos, exercícios de diversos graus de dificuldade e excentricidade, reuniões por vídeo conferência com temas sobre trabalho até fofocas do BBB.

Esse isolamento comunitário é bem mais interessante de se viver do que o isolamento que fiz em alguns períodos dos tratamentos das leucemias e atual mielodisplasia. Meu histórico de isolamento social já vem desde antes do smartphone, passando pelo período do embarque. Daí veio o tratamento… era isolamento real, quem me visitava não podia nem cumprimentar com 2 beijinhos ou um abraço. Dizem que o pessoal de SP trabalha tanto que só tem tempo para 1 beijinho…

Minha mãe era meu cão de guarda mantendo as pessoas afastadas a uma distância segura. O termo assintomático já é velho conhecido nosso. Para não surtar assisti até vale a pena ver de novo e estava passando “Chocolate com pimenta”. Como é engraçado o poder que as novelas tem sobre a gente, assistimos uma semana e já vicia.

Na época o instagram não tinha esses recursos de hoje, mas já existia o tinder. Perdia algumas horas do dia chavecando da cama do hospital. Lia livros, jogava videogame, via as maritacas voando pela janela… e acreditem, era uma um período histórico aonde não existia Netflix.

O mundo continuava a todo vapor, pessoas trabalhando ou estudando com suas rotinas. E eu assistia tudo pela janela. Meus fiéis escudeiros (Lu e leo) de embarque seguindo com suas vidas do ponto em que eu pensava que a minha havia sido interrompida. Era um tanto quanto reconfortante ver cada conquista deles e de quem eu gostava.

Só que no início me incomodava aquele ponto parecia o ponto final na minha vida. Estava abrindo mão de todos os meus planos e muitos eram com eles, todas as coisas que eu gostava de fazer. Viagens planejadas, embarcar, jogar bola, pegar onda, fora os sonhos a longo prazo. Tudo parava nesse ponto final. Era uma mistura de melancolia com saudade.

Os dias isolados foram passando e a gente entende como essas frases cotidianas são reais. E realmente “Cabeça vazia é oficina do Diabo”. O desconhecido sempre nos assusta e é nessa hora que lá atrás aperta. Vem a dúvida de como será amanhã, mês que vem. Será que teremos ano que vem?

Antes disso tudo nunca havia passado na minha cabeça a ausência da certeza do amanhã. Parece ser triste achar que estamos nos perdendo da nossa realidade, né? Meus períodos isolados antes do tratamento nunca me colocaram na dúvida sobre o amanhã (futuro para quem preferir). E estar lá no workshop com o Diabo pensando na ausência do futuro que me fez pensar mais sobre o presente.

Sempre me perguntam sobre o que eu mais aprendi com isso tudo e talvez valorizar mais o presente seja uma delas. Entender que a vida não é apenas uma linha reta entre o nascimento e a morte é uma tarefa difícil. Vivemos em ciclos, de altos e baixos. São fases que sempre vem e vão durante essa caminhada até nosso ponto final que para muitos é uma reticência.

Aonde quero chegar com esse texto? Sei lá, talvez nem eu saiba bem. Mas como bom conhecedor de isolamentos e quarentenas acredito que a maioria esteja também nessa oficina cheia de incertezas.

Está mais que entendido que o que vivemos não é uma gripezinha. Escuto meus amigos da área de saúde e percebemos que não sabemos muito o que está por vir. E durante o tratamento, sentir-se vulnerável pelo desconhecido foi justamente aonde me conheci mais. Não estou falando de morte necessariamente, mas na incerteza do amanhã.

A quebra da nossa rotina as vezes nos desestabiliza. Coisas simples as vezes fazem nossa rotina ser quebrada. No nosso dia a dia, uma unha encravada pode ser o fim do mundo para quem usa sapatos ou caminha muito. Só que ao mesmo tempo, nos lembra de como é bom ser livre e colocar uma gaze no dedão e ir de chinelo para o trabalho deixando o sapato ou o salto no armário.  Mas como será depois dessa quebra da rotina atual? Talvez nos de um choque em relação a como encaramos nosso presente de ficar “presos” ou assustados com o corona. E se tem algo que eu posso afirmar por experiência de vida é que tudo passa.

A fase de rotina antes dessa crise passou, a crise irá passar. E não pense você que tudo será como antes. Estamos aprendendo a valorizar o presente fora da maneira automática da nossa rotina. E aprenderemos muito por estar sem nossos sapatos e saltos passando por esse momento delicado.

Escutei uma menina esses dias dizendo que podemos aprender no amor e na dor. É exatamente o que estamos vivendo nesse período. Um período de grande aprendizado, tanto de dor, quanto de amor. E como adoro frases prontas, talvez a que mais usei nesse ano, “há males na vida que vem para o bem”. E se “a vida nos deu limão, façamos caipirinhas”.

E como “o que não tem remédio, remediado está”, aproveite esse momento, carpe diem. E por pior que seja nosso dia, podemos buscar algo que nos deixe alegre. Algo que faça nosso dia valer, com ou sem quarentena, com ou sem sapatos e saltos.

Porque depois que colocarmos os sapatos e os saltos novamente lembraremos que precisa de muito mais além de uma unha encravada para nos deixar tristes. “Não temos mais o tempo que passou…”